Arthur ouviu a água do chuveiro correndo e o bebê chorando.
Ótimo. Abotoou a camisa e se meteu dentro do jeans. Outra manhã para domar a ansiedade.
Deveria deixar Miguel chorando? Ignorar os lamentos zangados da criança e esperar que Lua cuidasse disso depois que saísse do banho?
Sim, pensou Arthur. Era exatamente isso que deveria fazer. Porém, enquanto procurava suas botas, os berros do menino fizeram com que se sentisse culpado. E se o garotinho estivesse doente? Ou amedrontado? Ou...
Miguel soltou outro gemido. Arthur se rendeu e foi até o quarto do garoto.
O bebê estava de pé no berço portátil, berrando como um pequeno banshee*. (* Ente sobrenatural do folclore irlandês, que emite um grito estridente quando alguém está para morrer.)
Assim que avistou Arthur, o bebê arquejou e, então, recomeçou a chorar.
— Qual é o problema? — perguntou Arthur. Miguel fez uma expressão de alívio.
— Pa... pa... pa.
Papa? Papai? O bebê estava chamando Micael?
— Não posso ajudá-lo, parceiro. Eu não tenho a menor idéia de onde o seu pai se enfiou.
O bebê olhou para o chão.
— Pa.
Arthur espiou para baixo, e então encontrou o bicho de pelúcia aos seus pés.
— Toda esta comoção é por causa disso? — Abaixou-se e pegou o brinquedo, um cavalo amarelo com a crina enfeitada por filetes dourados. — Aqui. — Entregou o pônei, que o garoto agarrou como se fosse um doce.
Miguel soluçava e abraçava o cavalo, e Arthur deu uma leve ajeitada no cabelo desalinhado do menino.
— Vamos ver se encontro alguma coisa para secar seus olhos. - Olhou em volta do quarto e notou um monte de cacarecos de bebê na penteadeira. Fraldas, um pote de toalhas descartáveis, loção. Viu as toalhas. Seria certo limpar o rosto do neném com aqueles lenços umedecidos, que são mais apropriados para limpar o bumbum?
Arthur não queria cometer nenhum erro estúpido e acabar irritando os olhos do bebê.
— Pronto, assim está melhor.
Miguel o recompensou com um sorriso apalermado.
— Eu acho que você também acha isso.
— Pa. — O bebê largou o cavalinho.
Arthur pegou o brinquedo, imaginando que diabos deveria fazer com aquilo. Então descobriu uma chave de corda do outro lado.
— Isso fala? — Torceu a chave e o brinquedo tocou uma canção de ninar. — Ah, entendi. É um cavalo musical.
Miguel fazia bolhas de saliva, e Arthur se perguntava o que Lua pretendia contar ao menino quando ele ficasse mais velho. A verdade, claro.
— Eu serei seu pai apenas por alguns meses. Então, é melhor não se acostumar com isso.
O menino lhe deu o cavalo outra vez.
— Tudo bem, ótimo. Nós vamos tocar aquela música de novo.
— Miguel estava tendo um ataque — contou Arthur. — Ele deixou o cavalo cair no chão.
— Pônei.
— Hã?
— É um pônei.
— Pa — arremedou Miguel, como um papagaio.
Arthur contemplou o brinquedo na sua mão. Então "pa" significava "pônei"?
— Ah, entendi. — Sentindo que se comportara como um tolo, entregou a Miguel seu parceiro peludo. Aquela porcaria desatou a tocar uma melodia enquanto o robe de Lua o distraía, executando um jogo de mostro-não-mostro.
Por que Lua deveria estar de calcinha, se tinha acabado de sair do chuveiro?
— Vou lhe mostrar como se troca uma fralda — anunciou Lua.
— Para quê?
— Porque supostamente você deveria aprender como ser um pai.
Lá vinha Lua de novo, a embelezar seu papel de coadjuvante naquela farsa, para convencê-lo a se comportar com espírito paternal.
— Você até pode me mostrar, mas eu não vou fazer nada disso, especialmente se ele estiver fedorento.
— O bebê está molhado.
— E como é que você sabe?
— Porque ele acorda molhado todas as manhãs.
Lua colocou Miguel na cama e desabotoou seu pijama. Enquanto seu corpo estava exposto, ela o cobriu rapidamente, e então alcançou as toalhas de papel.
Arthur revirou os olhos. Estaria Lua preocupada com os pudores do bebê?
Eu já vi um destes antes, Lua. Na verdade, tenho um igualzinho. — Virou-se para a braguilha das calças. — Sim, com toda a certeza eu tenho um.
Lua se dirigiu para Arthur.
— Menininhos costumam esguichar.
— Sério? — Arthur não conseguiu conter o riso. — Ele já esguichou em você?
— Em mim não, mas em Mica sim.
— Jura? — Cutucou a barriga da criança. — Então você fez pipi no seu pai, hein? Aposto que isso colocou o Sr. Criminoso Linha-dura no devido lugar.
Miguel gargalhou e Arthur sorriu.
— Exatamente como me sinto.
Lua sacudiu a cabeça.
— Isso não é nada engraçado.
— Então, por que você está achando graça?
— Não estou, não. — Mas estava, e ambos sabiam disso. Lua sempre teve um senso de humor patético, mesmo quando se tratava do cara-de-pau do irmão.
— Obrigada por tomar conta dele enquanto eu estava no chuveiro.
— Eu só peguei o pônei do chão. — Mas, dali em diante, Arthur decidiu que não serviria de apanhador oficial para o pequenino filhote de lobo. Por mais bonitinho que Miguel fosse, Arthur não queria mimar o filho de Micael. E também não planejava passar as manhãs jogando conversa fora com Lua. O robe dela se abria de novo, e as paredes o estavam sufocando.
— Eu tenho que ir. Terei um dia cheio pela frente. — Arthur ainda precisava contar para o tio que Lua voltara.
E mentir acerca de Miguel ser filho deles.
Arthur se encontrou com o tio no escritório do estábulo. Paco Elk dividia seu tempo entre ministrar aulas de equitação na arena e bancar o cicerone dos passeios guiados às montanhas. Evidentemente, hoje em dia, o pródigo rancheiro se contentava ficando em casa com a esposa e com o filho recém-nascido.
Paco conquistara seu direito à felicidade, Arthur acreditava. Havia perdido a primeira esposa num acidente de carro, uma colisão tão violenta que uma das pernas precisou ser amputada. Mas aquilo não o restringia em nada. Paco usava uma prótese, e era tão ativo e atlético quanto qualquer outro cowboy que Arthur conhecesse.
— Ei — saudou Paco, avistando Arthur da sua escrivaninha. Seu espaço de trabalho, como de costume, estava impecável. Arthur era muito responsável.
Está bem, talvez os atrasos para as reuniões fossem notoriamente reconhecidos. Assim como o fato de que, nas noites longas, escuras e solitárias, Arthur assistia a filmes eróticos, ficando mais bêbado do que um gambá. Mas ao menos ele não se tornou como Micael.
Entretanto, aos poucos, as lições de Paco começaram a penetrar suas cabeças duras. Até mesmo Micael começou a seguir a filosofia indígena, por todo o bem-estar que lhe causara.
— Você tem um minuto? — indagou Arthur.
Paco se voltou para ele novamente.
— Claro. O que você quer?
— Lua voltou.
A expressão no rosto do tio congelou.
— Ela está em casa?
— Sim. Em casa.
— E o que mais? — Paco se chegou para perto, sentando na beira da mesa.
— Ela... nós... — Como diabos poderia mentir para o tio, o homem que cuidara da sua mãe enferma, construíra aquele rancho e o tratava como a um filho?
— O que está errado? Por onde ela andava?
— Com Micael. Eles... — Arthur parou, inseguro sobre o quanto estava autorizado a revelar. Devia ter perguntado a Lua. Devia ter...
— Arthur — pressionou Paco.
— Micael precisou se esconder de alguns criminosos, e Lua estava com ele. Não pôde voltar, até agora.
— E Mica está bem?
— Desde que eu saiba, parece que sim. — Eliminando os pormenores sobre a Máfia, Arthur prosseguiu. — A coisa mais importante que eu precisava contar ao senhor é que Lua teve um bebê enquanto estava fora. Meu filho.
Pronto. Conseguiu. Com toda pompa, Arthur deixou que a mentira jorrasse, com o máximo de convicção da qual pôde dispor.
— Uau. — Admirado, Paco só conseguia encarar o sobrinho. — É um menino ou uma menina?
— Um menino. Ele tem 10 meses e seu nome é Miguel.
— Mas isso é incrível.
— Ah, se é.
Por um momento, ambos permaneceram em silêncio, e então o tio perguntou:
— Você está bem com toda esta história? Deve ter sido um choque. E eu sei o quanto você se sente desconfortável a respeito da...
— Ilegitimidade? — completou Arthur, antes que Paco pudesse terminar. Sabia perfeitamente que aquilo passaria na mente do tio. Arthur prometera muitos anos atrás que jamais engravidaria uma mulher sem casar-se com ela. Não queria cometer o mesmo erro do pai.
— Lua e eu estamos tentando consertar as coisas, mas tudo está um pouco tenso por enquanto.
— Compreendo.
— Você acha que poderia espalhar a novidade? Contar ao pessoal que Lua está de volta. E mencionar Miguel. Não gostaria que eu mesmo tivesse que contar a todo mundo. — Fez uma pausa para tomar o fôlego necessário. — E eu ficaria muito grato se o senhor pedisse às pessoas que nos dessem um pouco de privacidade. Ainda não estou pronto para lidar com visitas passando por lá, levando bolos ou tortas, ou qualquer outra coisa.
— Sem problema. Cuidarei disso.
— Obrigado. Vou sair agora. Tenho algumas coisas para fazer no hotel.
Paco tateou com as mãos, procurando a xícara de café sobre a mesa.
— Você vai me dizer quando poderei ver seu filho? E Lua?
Sem dizer uma palavra, Arthur concordou com a cabeça, e então agarrou o chapéu e esquivou-se rapidamente pela porta, temendo a decepção que já estava começando a viver.
Lua não sabia o que fazer. Aquele cão enorme continuava a arranhar a porta e a latir. Chegara até a uivar algumas vezes, um grito de guerra capaz de acordar os mortos. Lua fez uma careta. Agora o cachorro começara a ganir, e aqueles latidos cortantes e agudos perfuravam seus tímpanos.
Aquilo era o suficiente. Era hora de ligar para Arthur. Ainda lembrava o número do celular dele.
Enquanto o cachorro gania e gemia, e tentava entrar na casa a patadas, ela digitou o número.
— Alô?
— Arthur, sou eu, Lua.
A linha ficou silenciosa, e Lua amaldiçoou a prudência dele. Alguém até poderia pensar que estava com a doença que deixa a boca espumante. E falando nisso...
— Tem uma criatura gigantesca na porta, que não quer ir embora. Ele está latindo, uivando e arfando...
— Ah, é o Chester.
— O quê?
— Chester. Meu cachorro.
Aquele canino pestilento e mordido de pulgas era seu bicho de estimação?
— Como está a aparência dele? — quis saber Arthur.
Aquilo era alguma piada?
— Parece o cão do inferno.
Uma risada ecoou do outro lado da linha.
— É ele. Só pode ser Chester. Ele esteve fora, farreando. Sempre faz isso. Alguns dias depois, ele arrasta seu traseiro arrependido até em casa, atrás de uma cama quente e um bom prato de comida.
— Você deixou essa fera correr solta por aí? Andar com outros cachorros?
— Não. — Ele se corrigiu. — Só que ainda pensa que seu equipamento continua intacto.
Lua torceu o fio do telefone, enrolando-o em volta do pulso.
— É melhor que ele não tenha a mania de subir na perna das pessoas.
Arthur deu uma gargalhada.
— Nunca vi Chester fazer isso. Mas, claro, uma vez ele enfiou o nariz no vestido daquela gata maravilhosa.
Lua olhou enfezada para o telefone.
— Que gata maravilhosa?
— Chester só fez isso uma vez, de qualquer maneira.
— Uma vez é o suficiente.
— Eu sei, mas você não pode culpar um sujeito por tentar.
— O que você espera que eu faça? Estou trancada na casa com uma criança adormecida e o seu fiel animalzinho está tentando cavar um buraco debaixo da porta da frente.
— Então deixe o cachorro entrar. Ele não vai machucá-la.
— Você não pode estar falando sério. Esse cachorro é grande e feio. E também é um bocado nojento — acrescentou ela.
— Ah, ele deve ter brincado na lama. Corrido na chuva e tudo mais. Mantenha a calma, vou passar aí para dar um banho nele.
— É melhor você vir logo.
— Pode deixar.
Desligaram, e Lua ficou esperando. E esperou mais um pouco.
Miguel despertou com um choro lamuriento. Lua pegou o bebê no colo, levando-o até a sala de estar para esperar com ela. Seus olhos sonolentos se tornaram grandes e brilhantes. Quando o menino começou a balançar as mãos, golpeando o rosto com elas, Lua tentou apaziguá-lo.
— É só o cachorro do papai, meu anjo.
— Ta...ta... ta.
Finalmente, Lua ouviu o motor da caminhonete de Arthur, e assim que se certificou que ele havia prendido o cão, abriu a porta e espiou pela tela da porta.
Miguel fez um ruído de alegria, e Lua o balançou com os quadris.
No pátio da frente, a duras penas Arthur tentava dar um banho na criatura. Enquanto o rapaz lutava para ensaboar e molhar o cachorro com a mangueira, xingando a cada tentativa frustrada, Miguel ria estrondosamente.
Lua também riu. Enfim, Chester sacudiu seu corpanzil preto, encharcando seu mestre com água.
Miguel bateu palmas, e o cachorro de Arthur apareceu na porta de tela.
— Quem deu um banho em quem? — provocou Lua.
— Muito engraçado. Será que você pode me trazer algumas toalhas?
Abrindo apenas um bocadinho da tela, Lua deslizou as toalhas pela fresta estreita. Arthur se enxugou primeiro, depois foi atrás do cachorro.
— Venha aqui fora conhecê-lo — convidou Arthur.
Lua abraçou o bebê.
— E se ele tentar morder Miguel?
— Chester gosta de crianças.
— É melhor mesmo.
— Ele gosta, eu juro.
— Está bem. — Desconfiada, Lua rastejou para fora, segurando o filho bem firme.
Miguel fingiu bater asas, e Lua torceu para que aquele cachorro esquisito não o confundisse com um pássaro. A fera gania, agitada.
Arthur escoltou Lua e Miguel até o balanço da varanda, e o cão seguiu atrás.
— Chester, diga olá para Lua.
— Ta...ta... ta... ta.
— Você quer conhecer o cachorrinho? — encorajou Arthur — Então venha aqui. — Forrou o colo com uma toalha seca e tomou o menino de Lua.
Deixou que Miguel acariciasse Chester, e o cachorro aconchegou o focinho na mão do menino.
— Essa não — disse Lua admirada. Chester era manso como uma ovelha. Uma ovelha muito feia, com um focinho pontudo, olhos caídos e orelhas enormes. — Onde você arrumou esse cachorro, Thur?
— No abrigo de animais. Eu estava... ele estava... — Hesitante, pigarreou. — Eu o peguei alguns meses depois que você partiu. Precisava de alguém para me fazer companhia. A casa estava quieta como o diabo, e Chester trouxe um pouco mais de vida a este lugar.
— Ah. — Repleta de remorsos, Lua observou o cachorro deixar a cabeça tombar sobre o joelho de Arthur. Miguel se inclinava para frente, ansioso para acariciar Chester novamente.
— Viu? Eles se gostam.
— É mesmo. — Lua piscou, torcendo para não começar a chorar. Arthur parecia tão bem com um bebê adorável no seu colo e um cão fiel aos seus pés.
Arthur empurrou o balanço, e Miguel aninhou-se contra o seu peito. Chester sossegou, esperando secar o pêlo molhado.
— Está ótimo aqui fora — comentou Arthur.
Lua meneou a cabeça, concordando. O ar da tarde estava morno e as flores desabrocharam em um azul exuberante.
— É sempre bonito depois de uma tempestade. Depois que a chuva alimenta a terra.
Miguel, sonolento, foi fechando os olhos, se deixando levar, afinal não tinha concluído sua soneca da tarde.
— Você tirou suas roupas do meu quarto, Lua?
— Não, ainda não. — Lembrou de tê-las visto no armário embutido, enquanto varria o quarto à procura dos microfones. — Mas vou tirar. — Ficou surpresa por Arthur não ter dado tudo para caridade. Ou queimado.
— Sua antiga gaveta de lingerie ainda tem bastante coisa dentro, também.
— Eu sei. Eu vi. O meu carro ainda está na garagem?
— Está, mas a bateria morreu.
— Tenho que devolver para a agência de aluguel até sexta — explicou ela —, não posso me dar ao luxo de mantê-lo aqui.
— Vou providenciar uma bateria nova para o carro. E me certificar que ele funcionará direito novamente.
— Obrigada — murmurou Lua. — Ficarei muito grata por toda a ajuda.
Seus olhos se encontraram, e Lua sentiu o estômago latejar, sensação própria de uma menina. Em silêncio, observou enquanto ele acariciou as costas de Miguel, acalmando o bebê com um movimento suave, ninando-o para um sono mais profundo.
Um instante depois, subitamente, Arthur parou de impulsionar o balanço e de mover as mãos, como se tivesse tomado consciência de toda aquela ternura e daquele típico quadro familiar.
Homem, mulher, criança, cachorro.
— Preciso voltar ao trabalho.
Entregou Miguel para Lua, que tomou o garoto com pena. A criança se agitou, mas voltou a dormir.
— Agora você já pode lidar com o Chester, não é?
— Posso. — Espiou o cachorro, que olhou de volta para ela, empertigando aquele par de orelhas enormes e frouxas. — Que tipo de comida eu devo dar a ele?
— Qualquer coisa. Chester come as sobras da mesa.
— Darei a ele alguns restos, por enquanto, e um pouco do que eu cozinhar mais tarde. Talvez galinha. Reparei que tem algumas coxas assadas no freezer.
— Tudo bem, mas não conte comigo para jantar. Provavelmente, vou chegar tarde de novo esta noite. — Arthur se levantou, e sacudiu a calça empoeirada, esquecendo a toalha seca no balanço. — Não me espere.
— Não vou esperar — respondeu Lua contrariada, sabendo que na verdade ficaria deitada na cama, pensando nele.
eu otimo que vc voltou a postar, to apegada a essa historia. valeu ;)
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