Capítulo Nove
- Você conseguiu - Arthur me cumprimentou assim que eu me sentei ao lado dele na aula de história.
- Eu tô me sentindo bem melhor - falei animada. Sorri para ele e ele sorriu de volta.
“Está vendo? Tudo voltou ao normal”, eu me tranqüilizei, percebendo que ele vestia o suéter azul-escuro que eu havia dado no Natal. Percebi, também, o quanto ele ficava bem nele…
“Isso não é voltar ao normal, Lua. E ontem à noite você não dormiu sob nenhum efeito do remédio.”
- Tem algo que eu preciso conversar com você – sussurrou ele. – É sobre sábado.
- Sábado?
- É, humm, a convenção de história em quadrinhos… – ele enrolava para falar enquanto os seus olhos passeavam ao redor da sala, olhando para todos os lados exceto para mim. – Bem, é no Dia dos Namorados, e acho que eu deveria passar o dia com a Pérola. É importante para ela. Mas você provavelmente sabe disso, já a entrevistou.
Abaixei a cabeça e olhei para o meu caderno vermelho.
- Tudo bem, não é? – perguntou ele, com uma preocupação em seus olhos escuros. – Quer dizer, você provavelmente quer passar o dia com o Micael, certo?
Senti uma pontada atrás das minhas pálpebras. Lágrimas.
Passei o dedo no canto do olho para enxugar as lágrimas e voltei a encarar Arthur.
- Claro. Tenho certeza de que Micael vai querer fazer alguma coisa romântica durante a tarde. Então… talvez seja melhor a gente cancelar.
Na verdade, Micael não havia comentado nada sobre o sábado à tarde.
- Quer saber, talvez eu vá à convenção com Micael – contei. – Seria legal mostrar a ele algo que me interessa.
- Essa vai ser a primeira convenção de quadrinhos que nós vamos perder… até hoje – lembrou ele, olhando-me nos olhos. – Vai ser um pouco estranho não ir – continuou. Eu concordei com a cabeça, sem saber o que dizer. – Ah, e eu esqueci de te falar ontem. Pérola me contou sobre o papo de vocês duas no Bowl-a-Rama e o quanto você a fez se sentir melhor. Ela andava preocupada que você fosse minha outra namorada ou alguma coisa do gênero. Mas depois da conversa, ela percebeu o quanto eu tenho sorte por ter uma amiga como você.
“A outra namorada dele. A outra. Como Pérola ousava pensar que eu seria apenas uma outra na vida de Arthur!”
“Peraí! Calma, Lua. Seja lá o que está acontecendo, está ficando bem estranho.”
- Eu preciso muito de um favor – ele falou baixinho. – Amanhã, depois da escola, eu tenho que comprar o presente do Dia dos Namorados para Pérola. Você poderia me ajudar a encontrar algo para ela?
O que era aquela sensação de punhalada no meu peito? Eu engoli seco, aliviada que o nosso professor tinha acabado de entrar na sala.
- Sem problemas – afirmei para ele, enquanto meu coração estava sendo retorcido.
- Bem, vamos deixar as coisas mais claras – falou Sophia, empurrando o cabelo para trás dos ombros. – Agora você está deprimida por causa de Arthur e da namorada dele? Mesmo com Micael Borges, o deus do jornalismo, caindo de amores por você?
Dei uma pausa, respirando profundamente.
- Eu estou feliz por Arthur e Pérola, de verdade – argumentei. – É só que, por algum motivo, uma sensação me incomoda. Uma sensação de que ela está tomando conta de tudo que era meu, entende?
Era esse o problema, eu havia decidido durante a aula de história. A questão não era que depois de nove anos eu estivesse tendo sentimentos inesperados por Arthur. Não era que estivesse com ciúmes dele e de Pérola. E não era que eu estivesse magoada por ele ter me dispensado para passar o Dia dos Namorados com Pérola. Eu estava louca pelo Micael.
Sophia levantou uma sobrancelha.
- Você quer dizer tomando conta de Arthur.
- Não – falei, olhando para meus livros. – Eu não quero ser a namorada de Arthur. Eu nunca quis, você sabe disso.
- E as coisas andam bem com o Frank, certo? – interrompeu Linda, passando os dedos pelo cabelo como se estivesse olhando no espelho de dentro de seu armário.
- Sim – eu comecei a cutucar os livros nos meus braços – Ele é… incrível. Mas mesmo assim, eu não consigo evitar essa sensação de que estou perdendo Arthur ou algo parecido.
Sophia balançou displicentemente sua mão pelo ar.
- Escute, essa é a questão. Você está acostumada a ser a pessoa favorita do Arthur, e está se sentindo excluída apenas porque não é mais. E isso é tipo um chute no ego, não é?
Eu estremeci. As palavras ásperas dela tinham feito com que eu me sentisse uma pessoa péssima, especialmente porque eu sabia que ela estava certa.
- Mas – continuou Sophia – você vai superar isso logo. Especialmente com alguém lindo como Micael Borges do lado para aliviar o choque.
Ela sorriu, e eu não tinha outra saída senão retribuir o sorriso. Às vezes, era bom ter uma amiga tão direta.
O sinal tocou.
- Obrigada, Sophia.
"Sophia é sempre boa para nos trazer de volta à realidade", falei para mim mesma enquanto atravessava o corredor. "Provavelmente só estou estranhando o modo como Arthur faz tão bem essas coisas românticas – me levando sopas e lenços de papel quando eu estou doente, preocupando-se com o presente de Dia dos Namorados, comprando o livro de artigos da minha jornalista favorita para comemorar o meu novo cargo de editora do Postscript."
Talvez eu esperasse que Micael fosse um pouco mais atento. Um pouco mais como Arthur. Não que eu quisesse Arthur propriamente dito.
Não era esse o caso, definitivamente. E depois de uma ótima tarde na convenção de quadrinhos com Micael, e da incrível noite no baile, eu teria certeza absoluta disso. Tudo voltaria ao normal.
***
Eu coloquei minha bandeja sobre uma mesa nos fundos da lanchonete para observar com calma o comportamento dos casais da escola Emerson. Tinha certeza de que colheria um material interessantíssimo, e eu precisava começar a escrever o meu artigo para o Postscript. Peguei o meu cheeseburger e olhei ao redor.
Meu olhar se fixou em Marie Ikrath, uma garota que eu deveria ter entrevistado. Ela estava sentada ao lado de seu namorado, Clinton Arrowood. Eles conversavam, riam, conversavam, riam, se tocavam, se beijavam. Marie e Clinton namoravam há um tempão. E me lembrei do último Dia dos Namorados: ele tinha trazido um enorme buquê de rosas para a escola e entregado para Marie no meio do corredor, diante de todos os alunos. Eu havia achado aquilo tão forçado!
Mas agora morreria de felicidade se Micael fizesse a mesma coisa.
Clinton levantou o copo de refrigerante de Marie de modo que a única coisa que ela precisaria fazer era dar um gole. Depois, colocou o copo sobre a mesa e deu um beijo na bochecha dela. Aquilo me fez lembrar o modo como Arthur sempre adivinhava quando eu queria algo, mesmo antes de pedir.
Agora, o casal estava de mãos dadas, e, de vez em quando, Clinton puxava as duas mãos em direção a sua boca para beijar os dedos de Marie.
"Se você sentisse aquilo por alguém, não acharia DPA algo tão grosseiro." As palavras de Arthur daquele dia fatídico no Bowl-a-Rama voltaram para me assombrar. De fato, não achei que aquilo que Marie e Clinton estavam fazendo fosse grosseiro.
Percebi o quanto era carinhoso, bonito e maravilhoso. Era amor. E era algo que você nem poderia evitar, caso estivesse amando daquela maneira.
Eu virei meu rosto, com a sensação repentina de que estava invadindo um momento de privacidade.
Então, agora sabia por que não havia conseguido entrevistar as pessoas. Por que não havia trabalhado em meu artigo. Como poderia ridicularizar algo que, agora, eu levava tão a sério? Eu passei a entender que DPAs eram algo natural.
E que carinho não era algo para se debochar.
- Ei, Lua. Observando todos esses casais afetados, hã? – Micael sentou-se do outro lado da mesa e desembrulhou um sanduíche. Obviamente ele havia me procurado pela lanchonete toda antes de me achar escondida ali no fundo. Isso também era romântico. O fato dele não gostar de DPAs não significava que ele não sentisse o mesmo que eu sentia.
"Mas, o que eu sentia, afinal?"
- Bem, você fez aquele artigo sobre o curso de música da escola? – perguntou, tomando um gole do seu chá gelado.
- Nossa, eu me esqueci completamente disso! – admiti, surpreendida com a minha sinceridade. – Eu estava muito doente ontem, e hoje tenho um monte de coisas para colocar em dia…
- Tudo bem – disse ele. – Mas se você conseguir fazer até amanhã…
- Claro – retruquei, sorrindo para ele. Então, percebi que estava esperando ele me perguntar se eu me sentia melhor, se eu precisava de alguma coisa. Mas ele não falou nada. Provavelmente tinha muitas coisas com que se preocupar, como o Postscript e a campanha de historiador da escola.
- Sem querer eu ouvi a história mais triste do mundo enquanto estava na fila para comprar meu cheeseburger – falei, espremendo um sachê de ketchup sobre as minhas batatas fritas. – Quer um pouco? – perguntei.
- Obrigado, mas eu tento evitar essas coisas gordurosas – ele me lembrou. Naquele dia horrível em que saíramos com Pérola e Arthur, ele havia mencionado que não comia fritas ou qualquer outra coisa ensopada em óleo. Acho que eu não tinha registrado essa informação. Como que alguém podia não amar batatas fritas?
- Mas qual história piegas que você ouviu? – ele revirou os olhos. – Eu tenho certeza de que vou perder o apetite – falou, colocando o seu sanduíche sobre a mesa.
- Não, foi realmente comovente – falei a ele. – Um garoto contava para a namorada que quando ele era mais novo havia um costume na escola de dar presentes secretos durante a semana do Dia dos Namorados – contei, enquanto Micael balançava a cabeça, sem demonstrar muito interesse. – Então, os alunos deixavam coisas dentro do armário da pessoa escolhida, todos os dias da semana. Aí, o Anthony...
Micael franziu a testa.
- É importante manter as fontes anônimas – interrompeu ele. – Até mesmo se você estiver apenas me contando algo.
Engoli seco.
- Eu sei.
- Ei, não fique chateada – falou ele, sorrindo. – Mas lembre-se disso para o futuro.
"Isso foi um pouco irritante", pensei, dando uma mordida em meucheeseburger para esconder a expressão em meu rosto. Ele sempre tinha que fazer algum comentário profissional? Estávamos apenas eu e ele. Até parecia que eu sempre mencionava os nomes das pessoas em meus artigos.
"Lua, foi exatamente isso que fez você se sentir atraída pelo Micael no início. Ele é um jornalista sério, exatamente como você. Fica fria."
- E aí? – perguntou ele.
- Aí, a fonte passou a checar seu armário todos os dias, excitado com o que iria encontrar. Mas nunca havia nada. E então, essa é a pior parte, no último dia, ele imaginou que haveria algo muiiiiito grande para compensar toda a semana. Ele ficou totalmente fixado nessa idéia e…
- Não havia nada no armário – finalizou Micael, balançando a cabeça como se já conhecesse o fim.
- É – falei. – Não é horrível?
- É exatamente por isso que essa data é uma grande bobeira – afirmou Micael.
Franzi a sobrancelha, surpresa de que Micael não tivesse se sentido tocado do mesmo modo que eu. Ele não conseguia imaginar a expressão no rosto do pobre Anthony ao abrir o armário vazio na sexta-feira?
- Ah, e sobre a minha entrevista - acrescentou Micael. - Talvez pudéssemos fazê-la durante o baile. Eu vou estar bastante ocupado até lá por causa da minha campanha para historiador da escola.
Concordei com a cabeça. A última mordida daquele cheeseburger se transformou numa massa dentro do meu estômago. Então, os pontos de vista de Micaela continuavam os mesmos? Eu tinha imaginado que os sentimentos dele por mim fariam com que alguma coisa mudasse. Mas ele soava tão cínico quanto no início. Será que isso significava que ele não gostava realmente de mim?
- Ah, e eu acho que nós deveríamos nos encontrar no sábado à tarde - disse Micael -, assim poderíamos decidir o que iremos cobrir durante o baile.
Uma explosão de excitação tomou conta de mim. Micael queria passar todo o Dia dos Namorados comigo! E ele estava pedindo daquela mesma maneira adorável. Só porque eu me transformara em uma bola de sentimentalismo, não significava que ele também precisava me acompanhar nessas loucuras.
E só porque ele não era um palerma, não significava que não estivesse louco por mim.
O jeito de ser de Arthur não era o único. As pessoas podiam expressar os seus sentimentos de modos diferentes, e isso era tudo.
Era isso! Era esse o mote para o meu artigo. Por todo esse tempo eu não tinha conseguido imaginar como abordar o assunto, agora que eu entendia os DPAs… certo, agora que eu tinha expectativas em relação ao Dia dos Namorados.
Que alívio! Estava tão inspirada! E era graças ao Micael.
- Ótimo! - falei a ele. - Na verdade, eu quero muito, muito mesmo, ir a um certo lugar no sábado à tarde e eu gostaria que você fosse comigo. É uma convenção de histórias em quadrinhos que eu visito todos os anos, e garanto que você vai se divertir.
Micael me encarou, perplexo.
- Uma convenção de histórias em quadrinhos? - repetiu ele. - Você está brincando?
Será que ele havia percebido a minha cara cair?
- Bem… na verdade… não. É realmente divertido.
Ok, talvez eu e Micael não concordemos em absolutamente nada. Mas isso significa uma relação mais saudável, certo?
- Mas se não estiver a fim, então…
- Eu vou - disse Micael. - Apesar de ter que admitir que estou surpreso de saber que uma pessoa como você passaria uma tarde olhando desenhos - ele riu.
- Histórias em quadrinhos - murmurei suavemente, mordendo o meu lábio.
- O quê? - perguntou ele.
Balancei a minha cabeça e sorri para ele.
- Bem, se é importante para você, então é claro que eu irei ele me fitou, aproximando-se de mim. - Lua, eu realmente valorizo isso. Essa conexão que nós temos. Você sabe disso, não sabe?
Eu olhei para aqueles olhos castanhos cheios de sinceridade.
- Sei - falei timidamente. - E, bem, vai ser no Dia dos Namorados.
Micael sorriu.
- Ah, e nenhum casal de estudantes que se preze perde a oportunidade de fazer alguma coisa nessa data - brincou ele, seus olhos brilhavam.
"Casal de estudantes." Meu coração começou a fazer passos de balé dentro do peito. Micael havia nos chamado de casal sem pestanejar.
Isso era definitivamente um rótulo.
Transcrição da entrevista com Arthur Aguiar.
Lua: Bem, eu ainda não entendi por que você insistiu que eu te entrevistasse. Eu imaginava que você fugiria aos berros desse gravador. E mais, você não está preocupado com o que irá comprar para Pérola para o Dia dos Namorados?
Lua: Para que servem os amigos, não é? Isso é para te ajudar com o seu artigo. Ah, a gente tem que dar uma olhada naquela loja.
Lua: Uau, olha só todas aquelas coisas na vitrine! Eu nunca havia visto tantas caixas de bombons em formato de coração e tantos bichinhos de pelúcia em toda a minha vida. Ei, mas quer dizer que agora você está disposto a dividir as suas opiniões, mesmo que anonimamente, com toda a escola?
Arthur: Para ajudar você sim, senhorita editora.
Lua: Humm, Ok. Então, você, tem alguma recordação especial do Dia dos Namorados?
Arthur: Peraí, você sabe tudo o que aconteceu na minha vida.
Lua: Você entende qual o significado da palavra entrevista? [suspira profundamente] Ok, próxima pergunta. Na sua opinião, qual é o propósito do Dia dos Namorados?
Arthur: É fácil. É um dia para liberar os seus sentimentos e fazer que alguém em sua vida sinta-se especial.
Lua: Dando a essa pessoa chocolates e flores mais caros do que o habitual?
Arthur: Não, compartilhando símbolos tradicionais do amor como um modo de representar os seus sentimentos.
Lua: As lojas estão te pagando alguma coisa? Ei, pare, sem bater na sua entrevistadora. [barulhos de confusão] Então, espera, você está falando que aquelas pequenas caixas de bombons em formato de coração são especiais pelo fato de não serem únicas?
Arthur: Ei, sem chutar o entrevistado! [mais barulhos de confusão] É, é exatamente o que estou falando. Veja dessa maneira: quando um homem pede uma mulher em casamento, ele sempre dá a ela um anel de diamantes, certo? É uma coisa universal. Não é, de modo algum, único. Mas é exatamente o significado por trás desse velho gesto repetido inúmeras vezes que torna o anel de diamantes algo importante.
Lua: [silêncio]
Arthur: Nenhum comentário irônico? Você provavelmente está achando que é a coisa mais estúpida que já ouviu na vida, certo? Piegas e sentimental.
Lua: [barulho de páginas de caderno sendo folheadas] Eu estou entrevistando você, Sr. Aguiar. Próxima pergunta. Como você, hum, planeja celebrar o Dia dos Namorados esse ano?
Arthur: Com a garota que eu… bem, com Pérola.
Lua: [silêncio por um longo intervalo de tempo, depois fecha rapidamente o caderno] Ok, obrigada, Arthur.
Arthur: Mas eu pensei que você tinha mais…
Lua: Não, eu tenho tudo de que precisava. Vamos logo resolver essas compras, certo?

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